Abusividade na Retenção de Valores em Caso de Contestação de Compras por Cartão: Análise da Decisão do STJ
- Postulandi Petições
- 19 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
Em uma decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a abusividade de cláusulas contratuais que permitem a retenção de recebíveis a partir de uma simples contestação da compra pelo titular do cartão. Esse entendimento é especialmente relevante para relações contratuais entre lojistas e credenciadoras de cartão de crédito, onde o chargeback, ou estorno de valores em compras contestadas, é uma prática comum. A decisão aborda a necessidade de assegurar a ampla defesa e o contraditório, inspirada pela teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
1. O Chargeback e sua Estrutura no Sistema de Pagamentos
O chargeback é um mecanismo amplamente utilizado em compras realizadas com cartões de crédito ou débito, que permite ao titular do cartão contestar a compra em duas situações principais:
Quando não reconhece a transação.
Quando a compra não segue as regras estabelecidas pelas administradoras de cartão.
Nesse contexto, quando o titular do cartão contesta o lançamento, há um processo de estorno automático do valor ao lojista. Este, por sua vez, enfrenta a retenção do crédito mesmo sem a comprovação de que a contestação do cliente tenha procedência. Isso cria uma obrigação que muitas vezes é assumida automaticamente pelos lojistas em contratos de adesão com as credenciadoras, sem a possibilidade de discussão ou análise.
2. Natureza Jurídica dos Títulos de Crédito no Pagamento por Cartão
A partir de uma única compra com cartão de crédito, surgem ao menos três títulos de crédito, que estabelecem as relações jurídicas entre:
O titular do cartão e o emissor, com pagamento devido na data de vencimento da fatura.
O emissor e a credenciadora, com dedução da taxa de intercâmbio.
A credenciadora e o estabelecimento comercial, também descontada uma taxa de serviço.
Esse sistema, embora complexo, funciona de maneira a promover o fluxo de pagamentos, protegendo os interesses das instituições financeiras e das bandeiras de cartão, mas com um custo elevado para o lojista. Quando há uma contestação do pagamento, o lojista é diretamente impactado, pois a retenção ou estorno do valor ocorre automaticamente, sem processo adequado para que o comerciante possa se defender previamente.
3. Abusividade da Cláusula de Retenção de Recebíveis e o Entendimento do STJ
Na decisão em questão, o STJ julgou abusiva a cláusula que determina a retenção automática de recebíveis com base em uma simples contestação de compra, sem garantir ao lojista a possibilidade de ampla defesa. Isso se alinha ao princípio da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que preconiza a proteção dos direitos fundamentais não apenas nas relações entre o cidadão e o Estado, mas também nas relações privadas.
Esse princípio foi aplicado para assegurar que os direitos de defesa e contraditório, tradicionalmente garantidos contra arbitrariedades estatais, também sejam respeitados em relações contratuais privadas, especialmente naquelas em que uma das partes (o lojista) se encontra em posição de vulnerabilidade frente à credenciadora.
4. O Papel da Lei n. 12.865/2013 e a Necessidade de Regulação Uniforme no Sistema de Pagamentos
Embora a Lei n. 12.865/2013 tenha instituído o Sistema Brasileiro de Pagamentos e atribuído ao Banco Central a função de regulamentar esse sistema, ainda não há diretrizes uniformes que protejam os lojistas contra a retenção de valores em situações de contestação. A ausência de uma política padrão para contestação de transações e chargebacks significa que cada bandeira de cartão possui suas próprias regras, muitas vezes importadas de grandes mercados estrangeiros, sem consideração pelos desafios específicos do mercado brasileiro.
5. A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e o Caso dos Lojistas
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais, aplicada pela primeira vez no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal, estabelece que direitos como ampla defesa e contraditório são exigíveis nas relações privadas. No caso de retenção de valores em contestação de compras, isso significa que os lojistas devem ter acesso a um processo de contestação justo e transparente, no qual possam exercer plenamente seu direito de defesa antes de qualquer estorno.
Essa perspectiva do STJ inova ao aplicar princípios constitucionais no campo dos arranjos de pagamento, equilibrando o poder entre as grandes credenciadoras e os pequenos e médios comerciantes, que são os mais afetados por cláusulas abusivas.
6. Conclusão
A decisão do STJ de julgar abusiva a cláusula de retenção automática em casos de contestação de compras é um passo importante para equilibrar as relações contratuais no sistema de pagamentos. Ao impor a garantia da ampla defesa e contraditório ao lojista, o STJ busca proteger a parte mais vulnerável e promover uma relação contratual mais transparente e justa.
Para que essa proteção se consolide, é fundamental que o Banco Central adote medidas regulamentares que estabeleçam regras claras e uniformes para as práticas de contestação e estorno no mercado de pagamentos, reduzindo os prejuízos enfrentados pelos lojistas e garantindo maior segurança jurídica a todos os envolvidos.
REsp 2.151.735-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Rel. para ácórdão Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, por maioria, julgado em 15/10/2024.
Comentários